Quem sou eu

Santa Maria/Cruz Alta, Rio Grande do Sul, Brazil
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15 de mar. de 2011

V
Variamos o corte de cabelo, as roupas e, eventualmente, até a mulher com quem dormimos, mas as nossas perspectivas continuam as mesmas. Talvez os sapatos também estejam cansados de nós e pensem no quanto estamos velhos e desgastados, mas essas coisas não nos ocorrem e, talvez, não saibamos nem mesmo a marca da pasta de dentes que usamos pela manhã. O café necessita desesperadamente ser ingerido ainda quente em goles rápidos, ele sabe do nosso tempo. Enquanto giramos a chave da porta, antes de sairmos de casa, pensamos por um curto instante no vazio da existência, o absurdo de tomar um ônibus toda manhã e deslocar-se pelo incompreensível espaço-tempo até o escritório, com a certeza absoluta de que estamos indo ao trabalho, sendo que na verdade o trabalho nunca nos deixou. Do lado de fora, os carros cruzam apressados de encontro uns aos outros. É preciso manter-se nas calçadas, nas faixas de segurança, nas escadas e seguir o chão de ladrilhos perfeitamente encerados até o escritório. É preciso responder a um “bom dia” que talvez nos tenha sido dado no dia anterior, ou quem sabe já estejamos adiantando o do dia seguinte, ou talvez estejamos sozinhos na sala. Estamos todos nos afastando desde o início do universo até o dia em que todas as relações humanas não serão mais do que poeira cósmica. Passamos o dia no escritório nos esforçando para que tudo pareça o mais natural possível, fechando os olhos para o que está logo ali, uma frase fora do lugar, um gesto sem propósito e o vulnerável emaranhado de convenções pode ruir sob si mesmo. Após o trabalho, relembramos um vago plano de suicídio, mas então nos damos conta de que o guarda-chuva ou algum outro objeto ficou no escritório e precisamos voltar para buscá-lo. À noite, vamos a algum bar cujas paredes são cobertas por cartazes tão velhos que talvez falem de produtos que não existam mais e solicitamos no balcão um maço de cigarros a qual estamos acostumados, e que deixam um velho gosto em nossa boca, e bebemos uma cerveja que tem o gosto dos anúncios, um gosto desbotado, e olhamos para a mulher na mesa ao lado e ela também parece ter sido colocada ali há 20 anos. Levamos a mulher para a casa dela, mas preferimos não ficar, porque estamos cansados e fartos, mas não adianta tentar explicar. Já em casa, um pouco antes de dormir, mudamos o sofá de lugar, e assim, nos esquivamos de mudar a nós mesmos. No dia seguinte acordamos e achamos que estamos indo ao trabalho porque esta é a nossa vontade, mas o certo é que é a única coisa que temos a fazer.
(por Diego Eduardo Dill)


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